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quinta-feira, 8 de abril de 2021

Odisseu na Pauliceia; julho de 2012.

 


Odisseu na Pauliceia; julho de 2012

Há dez anos, Odisseu Ulisses perambula pelas ruas de São Paulo. Seu retorno ao paraíso natal, na Bahia de todos os santos e deuses, é cada vez mais improvável. Itacaré foi a cidade que abandonara sob a fúria dos orixás; exceto a de Iemanjá - mãe de todas as forças da natureza, rainha das águas salgadas – sua deusa protetora.

Odisseu é também filho de Obaluaê: oba (rei) - oluwô (senhor) - ayiê (terra), isto é, “rei, senhor da Terra”. Este é o caçador, lutador, que foi criado por Iemanjá. Daí a relação de carinho entre o guerreiro Odisseu Ulisses e Iemanjá: Divindade de olhos glaucos como as ondas do mar de sua terra.

Odisseu Ulisses da Silva. Poeta sem idade, professor de literatura, que prefere ser chamado só de Ulisses pelos frequentadores de um bar da Rua Augusta, onde faz um extra como garçom, na noite paulistana. Olhar perdido, afável de gestos e palavras, cabelos desarrumados sobre um sorriso que ilumina o rosto barbudo.

Era poeta, no entanto, jamais conseguira publicar seu livro de poesia, grosso caderno que carregava na mochila para rabiscar versos dentro do metrô. Lá dentro, o mundo se resumia a uma avalanche de pernas e mãos e olhos cravados nas telinhas dos celulares.

Ele era mais um invisível na multidão enlouquecida. Por isso preferia as imagens das palavras que criava ao sabor de sua vontade. Prazer inenarrável de degustá-las, ah...fazia amor com as palavras...Tinha orgasmos metafóricos. Beijava a semântica de lábios, sem cobrança; acariciava o significante seios oferecidos, em volúpia lexical. E gestava poemas suburbanos em secreta alegria.

Gostava de reler os versos de Nietszsche sobre a felicidade. Não acredito no eterno retorno, assobiava quase feliz:

“Desde que me cansei de procurar, aprendi a encontrar; desde que o vento começou a soprar-me na face, velejo com todos os ventos.”

Um dia, Ulisses sonhou com a mãe. Ela o acusava de tê-la abandonado; morrera de saudade e tristeza. Os dois caminharam em silêncio por veredas sombrias e vales pavimentados de lama, naquela espécie de purgatório. Ulisses acordou tarde de manhã, com o sol lambendo-lhe os olhos e o coração; chorava de remorso e culpa.

Era culpa de Obaluaê, que orquestrava seu cotidiano; regente de suas dores. Nesse dia, andou   lembrar-se da juventude, do tempo quando também descera ao Hades dos porões da ditadura, quando fora preso e torturado por fazer parte de um grupo literário de esquerda: ele e os companheiros reverenciavam o filósofo húngaro Georg LuKács e estudavam o seu livro Introdução a uma estética marxista como a uma bíblia. Quanta discussão amiga em torno dos conceitos de arte, política e literatura, naquelas tardes cinzentas! Tudo devidamente incensado pela fumaça do elegante cachimbo do líder do grupo.

E o guerreiro Ulisses viajou submerso na clandestinidade. Voltavam-lhe as imagens em ondas negras a perseguirem seus passos: dos tempos de movimento estudantil no Rio de Janeiro, da passeata do Calabouço em 68, do assassinato daquele estudante, o Edson Luís... Como um filme, um carnaval em cascata fazia jorrar em mesclas o vivido, o transvivido e o imaginado: O Festival de Woodstock, a contracultura, a guerra do Vietnam, o tropicalismo, a bossa nova, o cinema novo, o irreverente jornal O Pasquim de toda semana...

Odisseu Ulisses tivera algumas uniões estáveis. E até um filho ele deixou em Itacaré, e a ele dera o nome de Telêmaco, mas nunca mais voltou lá para visitá-lo.

Seu pensamento dançava em torno de um nome musical: Helena, a musa impossível de sua poesia. Conheceram-se numa oficina literária na PUC. Ela sorriu para ele; trocaram palavras, e carícias e o mundo ganhou outra cor depois desse encontro. Mas um dia Helena ganhou uma bolsa de estudos e foi embora para Paris fazer pós-graduação em Semiótica. E então instaurou-se para ele o signo do vazio pleno de saudade.

Atualmente passava tardes inteiras em livrarias burguesas, dialogando com a poesia e a filosofia. Mas os livros ele só comprava nos sebos, claro! Vivia embriagado de leitura para poder suportar o tédio de enfrentar os bêbados das baladas paulistanas.

Mas Ulisses era filho de Obaluaê, a força da natureza que provoca doenças, se bem que também cura, por compaixão e misericórdia. E Odisseu Ulisses começou a delirar de tanta febre e desejo de compreender o seu estar-no-mundo. Com dificuldade, ele conseguiu subir a Rua Augusta e chegar à Av. Paulista. No cruzamento, não viu nada além do mar de Itacaré que inundava tudo. E um barco grego que se aproximava trazendo todos os seus heróis. No leme, Palas Atena disfarçada em Iemanjá. Ela, a amada deusa de olhos glaucos, aproximou-se, tomou-lhe as mãos, conduzindo-o até a embarcação.

E, pouco a pouco o barco se fez balão de sonho, foi subindo ao infinito, navegando na esteira do arco-íris até a estrela da utopia. Itacaré então se tornou Pasárgada.

 Maria Nazaré Laroca

 Juiz de Fora, 08/04/2021.


9 comentários:

Unknown disse...

Adorei!

Amarilio Hevia de Carvalho disse...

NAZARÉ SEMPRE QUERIDA! HOJE CRIEI CORAGEM PRA HUMILDEMENTE OPINAR, ACREDITE! SIM, LI SEU TEXTO ODISSEU ULISSES DE PONTA A PONTA COM ENORME EMOÇÃO, PORQUE, SEM DÚVIDA, É MA - RA - VI - LHO - SO! TODA SUA VEIA POÉTICA ESTÁ NESTE ADMIRÁVEL TEXTO. PARABÉNS! Beijão de Amarílio

Lucas Laroca disse...

O processo de humanização dos deuses é uma criação do ser humano mostrando uma realidade tão mundana e ao mesmo tempo tão bela . A vida cotidiana de Ulisses como um cidadão morando na Pauliceia desvairada , mostrando a loucura frenética de SP e ao mesmo tempo um pouco de leveza e forma romantizada. Belo texto

Paulo P Nascentes disse...

A construção da personagem é arte. À ficção pouco importa ser pessoa ou não uma personagem. Assim se dá com Odisseu Ulisses da Silva. Poeta sem idade, professor de literatura, que prefere ser chamado só de Ulisses. Em que medida Paulo seria personagem tem pouca importância. E se a vida for nosso provisório palco de muitos ensaios e anseios pela estreia. Enfim, quando será nossa estreia na Vida? Por ora, esta personagem ignora. E muito!

Paulo P Nascentes disse...

* pela estreia?

JOSE LEITE DE OLIVEIRA JUNIOR disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
JOSE LEITE DE OLIVEIRA JUNIOR disse...

Caríssima Nazaré, viajei em sua bela prosa poética nas peripécias desse incrível Odisseu tropical. Quantos percursos se cruzam em seu texto, que consegue dar testemunho de uma época difícil (lamentavelmente ainda viva), sugerir conexões intertextuais e interculturais, num sincretismo de deuses e de poéticas. Particularmente, recolhi esta frase: "Mas um dia Helena ganhou uma bolsa de estudos e foi embora para Paris fazer pós-graduação em Semiótica." Frase adversativa que mostra essa eterna peleja entre o saber e o sentir. Aqui é a Penélope que dá no pé... Meus parabéns!  

Denise disse...

Belo e delicado texto, Nazaré.

Vitória Portugal disse...

Faço minhas as palavras simples mas verdadeiras do Lucas!!! Beijo grande ❤️🌹