Odisseu
na Pauliceia; julho de 2012
Há dez anos, Odisseu Ulisses perambula pelas
ruas de São Paulo. Seu retorno ao paraíso natal, na Bahia de todos os santos e
deuses, é cada vez mais improvável. Itacaré foi a cidade que abandonara sob a
fúria dos orixás; exceto a de Iemanjá - mãe de todas as forças da natureza, rainha
das águas salgadas – sua deusa protetora.
Odisseu é também filho de Obaluaê: oba (rei) -
oluwô (senhor) - ayiê (terra), isto é, “rei, senhor da Terra”. Este é o
caçador, lutador, que foi criado por Iemanjá. Daí a relação de carinho entre o guerreiro
Odisseu Ulisses e Iemanjá: Divindade de olhos glaucos como as ondas do mar de
sua terra.
Odisseu Ulisses da Silva. Poeta sem idade, professor
de literatura, que prefere ser chamado só de Ulisses pelos frequentadores de um
bar da Rua Augusta, onde faz um extra como garçom, na noite paulistana. Olhar
perdido, afável de gestos e palavras, cabelos desarrumados sobre um sorriso que
ilumina o rosto barbudo.
Era poeta, no entanto, jamais conseguira
publicar seu livro de poesia, grosso caderno que carregava na mochila para
rabiscar versos dentro do metrô. Lá dentro, o mundo se resumia a uma avalanche
de pernas e mãos e olhos cravados nas telinhas dos celulares.
Ele era mais um invisível na multidão
enlouquecida. Por isso preferia as imagens das palavras que criava ao sabor de
sua vontade. Prazer inenarrável de degustá-las, ah...fazia amor com as
palavras...Tinha orgasmos metafóricos. Beijava a semântica de lábios, sem cobrança; acariciava o
significante seios oferecidos, em
volúpia lexical. E gestava poemas suburbanos em secreta alegria.
Gostava de reler os versos de Nietszsche sobre
a felicidade. Não acredito no eterno retorno, assobiava quase feliz:
“Desde
que me cansei de procurar, aprendi a encontrar; desde que o vento começou a
soprar-me na face, velejo com todos os ventos.”
Um dia, Ulisses sonhou com a mãe. Ela o acusava
de tê-la abandonado; morrera de saudade e tristeza. Os dois caminharam em
silêncio por veredas sombrias e vales pavimentados de lama, naquela espécie de purgatório.
Ulisses acordou tarde de manhã, com o sol lambendo-lhe os olhos e o coração; chorava
de remorso e culpa.
Era culpa de Obaluaê, que orquestrava seu cotidiano;
regente de suas dores. Nesse dia, andou lembrar-se da juventude, do tempo quando
também descera ao Hades dos porões da ditadura, quando fora preso e torturado
por fazer parte de um grupo literário de esquerda: ele e os companheiros reverenciavam
o filósofo húngaro Georg LuKács e estudavam o seu livro Introdução a uma estética marxista como a uma bíblia. Quanta discussão
amiga em torno dos conceitos de arte, política e literatura, naquelas tardes
cinzentas! Tudo devidamente incensado pela fumaça do elegante cachimbo do líder
do grupo.
E o guerreiro Ulisses viajou submerso na clandestinidade.
Voltavam-lhe as imagens em ondas negras a perseguirem seus passos: dos tempos
de movimento estudantil no Rio de Janeiro, da passeata do Calabouço em 68, do
assassinato daquele estudante, o Edson Luís... Como um filme, um carnaval em
cascata fazia jorrar em mesclas o vivido, o transvivido e o imaginado: O Festival de Woodstock, a contracultura,
a guerra do Vietnam, o tropicalismo, a bossa nova, o cinema novo, o irreverente
jornal O Pasquim de toda semana...
Odisseu Ulisses tivera algumas uniões estáveis.
E até um filho ele deixou em Itacaré, e a ele dera o nome de Telêmaco, mas
nunca mais voltou lá para visitá-lo.
Seu pensamento dançava em torno de um nome musical:
Helena, a musa impossível de sua poesia. Conheceram-se numa oficina literária
na PUC. Ela sorriu para ele; trocaram palavras, e carícias e o mundo ganhou
outra cor depois desse encontro. Mas um dia Helena ganhou uma bolsa de estudos
e foi embora para Paris fazer pós-graduação em Semiótica. E então instaurou-se
para ele o signo do vazio pleno de saudade.
Atualmente passava tardes inteiras em livrarias
burguesas, dialogando com a poesia e a filosofia. Mas os livros ele só comprava
nos sebos, claro! Vivia embriagado de leitura para poder suportar o tédio de
enfrentar os bêbados das baladas paulistanas.
Mas Ulisses era filho de Obaluaê, a força da
natureza que provoca doenças, se bem que também cura, por compaixão e misericórdia.
E Odisseu Ulisses começou a delirar de tanta febre e desejo de compreender o
seu estar-no-mundo. Com dificuldade, ele conseguiu subir a Rua Augusta e chegar
à Av. Paulista. No cruzamento, não viu nada além do mar de Itacaré que inundava
tudo. E um barco grego que se aproximava trazendo todos os seus heróis. No
leme, Palas Atena disfarçada em Iemanjá. Ela, a amada deusa de olhos glaucos, aproximou-se,
tomou-lhe as mãos, conduzindo-o até a embarcação.
E, pouco a pouco o barco se fez balão de sonho,
foi subindo ao infinito, navegando na esteira do arco-íris até a estrela da utopia.
Itacaré então se tornou Pasárgada.
Maria
Nazaré Laroca
Juiz
de Fora, 08/04/2021.