O lápis sem ponta
Estamos no País da Gramática, no
palácio do verbo Ser. Diante de Sua Serência, quase não consigo escrever nada. Eu
sou o lápis sem ponta, atrás da orelha da Emília. Estou trêmulo. Esforço-me, e
a ponta só arranha o papel.
A boneca é tão senhora de si, que nem presta
atenção ao meu sofrimento. E eu só sou um lápis por causa do verbo Ser. Se não
fosse ele, não existiria.
Ai, Emília, não precisa morder
assim, para fazer a ponta, não adianta.
Não sei como Lobato conseguiu
escrever esse capítulo.
Maria Nazaré Laroca
Juiz de Fora, 29/04/2014.
Emília na casa do Verbo
Ser
Emília foi levada à
presença dele e entrou muito tesa, com um bloquinho de papel debaixo do braço e
um lápis sem ponta atrás da orelha. O venerando ancião estava sentado num
trono, tendo em redor de si os seus sessenta e oito filhos — ou Pessoas dos
seus Modos e Tempos. Parecia um velho de mil anos, com aquela cabeleira branca
de Papai Noel.
— Salve, Serência! —
exclamou Emília, curvando-se diante dele, com os braços espichados, à moda do
Oriente. — O que me traz à vossa augusta presença é o desejo de bem servir aos
milhares de leitores do Grito do Pica-Pau Amarelo, o jornal de maior tiragem do
sítio de Dona Benta. Os coitados estão ansiosos por conhecer as ideias de Vossa
Serência sobre mil coisas.
— Suba, menina! —
respondeu o Verbo Ser com voz trêmula.
Emília subiu os degraus
do trono, abrindo caminho a cotoveladas por entre a soldadesca atônita, e foi
postar-se bem defronte do venerável ancião.
— Fale, Serência,
enquanto eu tomo notas — disse ela, e começou a fazer ponta no lápis com os
dentes.
O Verbo Ser tossiu o
pigarro dos séculos e começou:
— Eu sou o Verbo dos
Verbos, porque sou o que faz tudo quanto existe ser. Se você existe,
bonequinha, é por minha causa. Se eu não existisse, como poderia você existir
ou ser?
— Está claro — disse
Emília escrevendo uns garranchos. — Vá falando.
Ser tossiu outro pigarro
e continuou:
— Muitos gramáticos me
chamam VERBO SUBSTANTIVO, como quem diz que eu sou a substância de todos os
demais Verbos. E isso é verdade. Sou a Substância! Sou o Pai dos Verbos! Sou o
Pai de Tudo!
Sou o Pai do Mundo! Como
poderia o mundo existir, ou ser, se não fosse eu? Responda!
— Não tem resposta,
Serência. É isso mesmo — disse Emília,
escrevendo. — Os leitores
do Grito vão ficar tontos com a minha reportagem. O diabo é este lápis sem
ponta. Não haverá por aí algum canivete
ou faca que não seja de mesa, Serência?
Não havia canivete, nem
faca, nem nenhum instrumento
cortante naquela cidade
de palavras, de modo que Emília só podia contar com os seus dentes. Mas tanto
roeu o lápis, sem conseguir boa ponta, que ele foi diminuindo, diminuindo, até
virar um toquinho inútil.
Acabou-se o lápis — e foi
essa a verdadeira causa de o Grito do Pica-Pau Amarelo (jornal que aliás nunca
existiu) não haver publicado a mais sensacional reportagem que ainda foi feita
no mundo. O Verbo Ser falou muita coisa de si, contando toda a sua vida desde o
começo dos começos. Disse que já havia morado na cidade das palavras latinas,
hoje morta.
— Naquele tempo eu me
chamava Esse. Depois que a cidade latina começou a decair, mudei-me para as
cidades novas que se foram formando por perto, e em cada uma assumi forma
especial. Aqui nesta tomei esta forma que você está vendo e que se escreve
apenas com três letras. Na cidade de Galópolis virei Ètre. Em Italópolis virei
Essere. Em Castelópolis sou como aqui mesmo.
— Então foi em Roma que
Vossa Serência nasceu?
— Não, menina. Sou muito
mais velho que Roma. Antes de mudar-me para lá eu já existia na cidade das
palavras sânscritas; e antes de ir para a cidade das palavras sânscritas, eu já
vinha não sei de onde. Perdi a memória do lugar e do tempo em que nasci, embora
esteja convencido de que nasci junto com o mundo.
(Emília
no país da Gramática - Monteiro Lobato)
Um comentário:
Ai, que delícia!!!
Saber é saborear...
Obrigada, por esse regalo à memória.
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